A Quinta do Falcão

Passo por ali milhares de vezes e nunca me apercebi da existência do “mirante” que dá o nome àquela zona. É normal. Passo sempre de carro, com muita atenção à estrada e ao trânsito, de modo que nada me possa distrair da condução. Por isso fui lá há dias, estacionei o carro e, pela primeira vez na minha vida, estive a apreciar o património edificado naquela zona. Estou-me a referir à Quinta do Falcão, uma construção que só peca por estar situada numa zona de algum trânsito e em cheio numa curva.

Toda a gente a conhece mas poucos se lembram da sua verdadeira história. Ando há tempos a tentar saber mais alguma coisa sobre o assunto mas não é fácil. Por isso, vou avançar com o pouco que tenho. Como é habitual no Facebook, este artigo fica aberto à discussão e conto com a opinião de todos os leitores para irem dando dicas para o corrigirem e acrescentarem até se tornar do consenso de todos os leitores e respeitador da verdade.
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A Quinta, ou seja, aquele aglomerado de casario e terrenos de cultivo a que se chama “Falcão”, deve o seu nome ao seu primeiro proprietário, João Falcão de Sousa, 10º capitão do donatário da ilha de Santa Maria. Segundo Gaspar Frutuoso registou: “(…) João Falcão de Sousa, foi sargento e capitão-mor da ilha de Santa Maria, por carta de D. João IV de Maio de 1654. João Falcão de Sousa governou a ilha na menoridade de Brás Soares de Sousa, 7.º capitão-donatário, desde a dita data de nomeação, acima mencionada, até à sua morte, que ocorreu a 12 dezembro de 1657. Foi superintendente das fortificações da ilha de Santa Maria, e, como tal, diligenciou completar a defesa da ilha, não só em Vila do Porto como em todos os pontos onde havia facilidade de um inimigo entrar. Chegou mesmo a empenhar os seus bens para concluir as obras empreendidas. À data da sua morte, devia-lhe Sua Majestade um conto e novecentos mil réis do dinheiro que ele e sua mãe, D. Margarida de Sousa, tinham abonado para as fortificações, o qual, com muita dificuldade, mais tarde esta senhora cobrou.
João Falcão de Sousa foi voluntariamente ao cerco do castelo da ilha Terceira [(1641-1642)] na época da Restauração e edificou, juntamente com sua mãe, a ermida de Nossa Senhora da Boa Nova, em Vila do Porto, junto das casas da sua residência, dando-lhe património por escritura pública de 6 de Abril de 1657. Já em 16 de Novembro de 1653 dera património para a ermida de Nossa Senhora da Graça, que erigira numa sua quinta. Morreu solteiro, deixando numerosa descendência ilegítima e havendo feito testamento a 25 de Abril de 1657, aprovado a 12 de Dezembro do mesmo ano. Foi sepultado na capela-mor da referida igreja do convento de São Francisco.”
É muito provável que Laureano Francisco do Canto Câmara Falcão, 11.º Morgado da Ilha, tenha sido um dos herdeiros das propriedades de João Falcão de Sousa. Porque a Quinta do Falcão é uma construção do século XVIII, segundo tudo parece indicar, mas não há memória nem escrito que comprove isso. PORÉM, e segundo Manuel Velho, todas aquelas propriedades são, em meados do século XIX, de Maria Guilhermina da Boa Nova de Sousa Coutinho, nascida em 1770, e dos seus ascendentes tais como seu pai, José Inácio de Sousa Coutinho, capitão-mor de Santa Maria. Maria Guilhermina, viúva e sem herdeiros diretos, passou todos os seus bens, por volta de 1850, a seu primo em 3.º grau João Severino Gago da Câmara “Velho”, casado com Maria Guilhermina Falcão Gago da Câmara e que teve dois filhos: Victor Gago da Câmara e João Severino Gago da Câmara, trisavô do atual proprietário da Quinta. Victor teve como um dos filhos Gil Gago da Câmara e neto o Dr. Jorge Gago da Câmara, médico. Quanto a João Severino, teve um único filho, de nome Jacinto Gago da Câmara, advogado e Conservador do Registo Predial em Coimbra, casado com Maria Eduarda Soares de Albergaria. Jacinto Gago da Câmara morreu precocemente com febre tifóide, aos 32 anos, depois de deixar dois filhos: Maria Jerónima e Jacinto Soares Albergaria, atualmente com 93 anos, avó e tio-avô de Nuno Moreno.
Por morte de João Severino, ocorrida em 5.12.1950, e da esposa D. Adelina em 1958, coube em sortes a Quinta de S. Lourenço a Jacinto Soares Albergaria e a Quinta do Falcão a Maria Jerónima . Quando esta senhora faleceu em 2009, calhou essa Quinta a Nuno Moreno.
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Há muitas memórias ainda vivas desse tempo e da mais trágica de todas que levou à morte, por envenenamento, da D. Syme Bytton Bensaúde Bensliman, casada com Luiz Bytton Bensaúde, que tinha vindo viver com a filha para Santa Maria após enviuvar em S. Miguel. A D. Adelina Bytton Bensaúde Gago da Câmara, esposa de João Severino Gago da Câmara, e a D. Syme são familiares colaterais de Vasco Bensaúde, pai de Patrícia Bensaúde, atual Presidente do Conselho de Administração do Grupo Bensaúde. Note-se, a título de curiosidade, que o ex-presidente da República Jorge Sampaio descende de Abraão Bensaúde, irmão da D. Syme.
Contrariando o que se diz ainda por Almagreira, tanto a D. Adelina como o senhor João Severino estão sepultados no cemitério de Vila do Porto. O envenenamento que ocorreu foi um caso muito mal julgado pelos tribunais do tempo, sendo que o suspeito principal, que era o dono do veneno usado, conseguiu pagar a um bom advogado, tendo-se safado com uma pena muito ligeira. Este caso foi narrado numas quadras de Artur Botelho, um poeta popular contemporâneo do incidente. Toda a gente lamentou o caso, que estaria em linha com uma conjura que pretendia, segundo consta, levar a uma mudança de proprietário através de um testamento forjado. A senhora D. Adelina, assim como o senhor João Severino, eram pessoas muito queridas de todos com quem lidavam.

Era grande a produção de cereais com origem nos terrenos deste morgado. João Cabral chegou a ouvir os mais velhos dizerem que o senhor João Severino Velho chegou a meter vinte carros de bois ao caminho nos seus trabalhos agrícolas. Segundo narra António Tavares, foi construído no Calhau da Roupa, por ordem do senhor João Severino (Velho), um navio que se destinava a levar o cereal para o continente. Tudo parece ter corrido bem e, ao fim de dezoito meses, a construção do barco de cabotagem foi concluída. Foi arreado à água, carregado e amarrado às bóias do fundeadouro. O azar foi o tempo ter mudado, sobrevindo um temporal que rebentou com as amarras. O barco veio a encalhar e a afundar com todo o carregamento de cereais, na mesma zona onde, nos anos sessenta do século XX, veio a encalhar, partindo-se ao meio, o petroleiro “Velma”.
Conforme diz Arsénio Chaves Puim, a Quinta do Falcão era conhecida como a “Casa do Pai”, como forma de exprimir a ideia de que era o sítio que dava de comer a muita gente, não só pelo trabalho mas também porque supria de modo generoso e altruísta a fome e necessidades do povo. Parte das crias de mais de trezentas cabeças de gado existentes na Quinta, eram oferecidas, assim como géneros alimentícios. A ajuda também abrangia, por vezes, a construção de casas de habitação para alguns trabalhadores.
A Igreja de Almagreira foi construída num espaço doado por João Severino “Velho” e a sua construção foi em grande parte feita pelos homens de João Severino.
O retângulo de entrada na Quinta do Falcão também tinha utilidade. Era aproveitado para encenar os “Treatos”, peças de teatro de sabor popular levadas à cena para animar o povo. Nessas alturas o espaço era aberto a toda a gente. A D. Maria Inês Farpelha Braga, ainda era criança de tenra idade, lembra-se de ir lá ver a “Inês de Castro”. O pai fazia o papel de Pedro Coelho, um dos homens “que la matou” e a quem iria ser arrancado o coração pela barriga. Para a cena usaram o coração do cacho de uma bananeira. E assim foi. Quando simularam o arranque do órgão e o pai caiu ao chão, ela largou a gritar. Aos olhos da criança, a cena era autêntica e ela não estava preparada…
João Severino tinha grandes propriedades na ilha de Santa Maria. Ele conseguia embarcar e desembarcar na ilha sem sair do que era seu. Embarcava no porto dos Anjos, que eram terra sua, e desembarcava na Praia, que também lhe pertencia, antes da venda ao Francisquinho da Praia. Também parte de S. Lourenço era sua. Segundo Jaime de Figueiredo narra no livro “Ilha de Gonçalo Velho”, tinha criados postados no Portão que tocavam uma corneta para alertar o pessoal da casa de S. Lourenço quando ele estava quase a chegar, lá pelo Verão. Usava na Vila o seu enorme solar, com igreja anexa, para passar o fim do Outono e o Inverno. Já no princípio deste século, depois de ter sido arrendado a várias famílias, estava muito degradado e a Câmara Municipal adquiriu-o para instalar a Biblioteca Pública de Vila do Porto. A grande reparação e reconstrução que sofreu apagou quase todos os vestígios da Igreja da Boa Nova, que tinha dado o nome à rua. Mantiveram, no entanto, a cor almagre que carateriza todos os prédios do senhor João Severino, que ainda hoje se mantém.
Neste momento, a Quinta do Falcão, é pertença de Nuno da Câmara Moreno. Desde muito novo, e segundo o próprio, Nuno Moreno acompanhou a avó a Santa Maria e foi-se interessando pela Ilha, ao mesmo tempo que também começou a tomar gosto pela Quinta do Falcão. Tal bastou para se aventurar no restauro da mesma para fins turísticos. Numa 1.ª fase será restaurado todo o casario, obras que já estão em curso, e numa 2.ª fase será restaurada a casa principal para funcionar como Pousada. Resta só desejar muita sorte e sucesso em todo este empreendimento.